Òrìsà Òmúlù / Òbàlúwàyiè

 

Ao senhor da doença é relacionado um arquétipo psicológico derivado de sua postura na dança: se nela Òbàlúwàyiè, esconde dos espectadores suas chagas, não deixa de mostrar, pelos sofrimentos implícitos em sua postura, a desgraça que o abate. No comportamento do dia a dia, tal tendência se revela através caráter tipicamente masoquista, compondo aquele tipo bastante freqüente nas comédias de Molière, que costumam exagerar seus sofrimentos ao externá-los para as pessoas em geral.
Os filhos de Obàlúwàyiè como pessoas que são incapazes de se sentirem satisfeitas quando a vida corre tranqüila para elas. Podem até atingir situações materiais e rejeitar, um belo dia, todas essas vantagens por causa de certos escrúpulos imaginários. São pessoas que, em certos casos, se sentem capazes de se consagrar ao bem-estar dos outros fazendo completa abstração de seus próprios interesses e necessidades vitais.
No candomblé, tal interpretação pode ser por demais restritivas.
A marca mais forte de Obàlúwàyiè não
É a exibição de seu sofrimento, mas o convívio com ele.
Ele se manifesta numa tendência autopunitiva, muito forte, que tanto pode revelar-se como uma grande capacidade de sumarização de problemas psicológicos isto é, a transformação de traumas emocionais em doenças físicas reais, como numa elaboração de rígidos conceitos morais que afastam seus filhos de santo do cotidiano, das outras pessoas em geral e principalmente dos prazeres. Sua insatisfação básica, portanto, não se reservaria contra a vida, mas sim contra si próprio, uma vez que ele foi estigmatizado pela marca da cabeça, já em si uma punição. É o sofrimento daquele que nasceu errado, já sendo castigado antes de ter a chance de fazer qualquer coisa. Por essa e por outras configurações, é fácil que se encontre entre os filhos desse Òrìsà pessoas que passam por sacrifícios enormes, como os que procuram emprego onde o sofrimento é parte integrante, mesmo que em termos morais. São muitos religiosos católicos em que Òbàlúwàyiè está presente.
Em outra forma de extravasar seu arquétipo, um filho do Òrìsà menos negativista pode apegar-se ao mundo material de forma sôfrega, como se todos estivessem perigosamente contra ele, como se todas as riquezas lhe fossem negadas, gerando um comportamento obsessivo em torno da necessidade de enriquecer e ascender socialmente. O poder para estas pessoas é um imperativo, pois carregaria, dentro de si, inconscientemente, a imagem da criança rejeitada que compensa com poder aquisitivo e com influência sobre a vida das outras pessoas o afeto que lhe foi negado desde o momento de seu nascimento. Mesmo assim, um certo toque do recolhimento e da autopunição de Obàlúwàyiè serão visíveis em seus casamentos: não raro se apaixonarão por figuras extrovertidas e sensuais como a indomável Iansã (Oyà), a envolvente Òsún,o atirador Ògún que ocupam naturalmente o centro do palco, reservando ao conjuge de Obàlúwàyiè um papel mais discreto. Gostam de ver o ser amado brilhar, mas o invejam, e ficam vivendo com muita  insegurança, pois julgam a outra fonte de paixão e interesse sexual de todos, alguém que precisa ser mantido a todo custo e lá no fundo a pergunta roendo, por que ficar com alguém que não o (a) merece, como o errado de nascença Obàlúwàyiè?
Assim como Òsónyìn as pessoas desse tipo são basicamente solitária, mesmo tendo um grande círculo de amizades, freqüentando o mundo social, seu comportamento seria superficialmente aberto e intimamente fechado, mantendo um relacionamento superficial com o mundo e guardando sua intimidade para si própria. Não raro, os filhos de Òbàlúwàyiè são pessoas que julgam ter característica detestáveis que vivem criticando, motivo de vergonha. Há facetas de suas personalidades ou então de seu corpo que não devem ser mostradas, pois seriam vergonhosos.
Quando um filho de Òbàlúwàyiè dança, ele se cobre com palha, uma malha praticamente se forma, com a palha quase arrastando no chão e cobrindo quase que totalmente a figura. O rosto está coberto por essa palha para que não sejam vistas as chagas da varíola, marca inesquecível do Òrìsà. Da mesma maneira, o filho do Òrìsà oculta sua individualidade com uma máscara de austeridade, mantendo até uma aura de respeito e de imposição, de certo medo aos outros. Pela experiência inerente a um Òrìsà velho, os filhos de Òbàlúwàyiè e não necessariamente os de Òbàlúwàyiè são pessoas irônicas. Seus comentários, porém não são prolixos e superficiais como os de Òsún outro Òrìsà profundamente irônico, mas secos e diretos, o que colabora para a imagem de terrível que forma de si próprio.
Da mesma forma, o Òrìsà deve ser muito bem cuidado e respeitado nos cultos se não poderia, segundo os comentários de freqüentadores de diversos candomblés, enfurecer-se e distribuir a todos doenças mortais.
Um último, mas importante detalhe: em diversas de suas lendas, o Òrìsà da varíola é apresentado como uma divindade que perdeu uma perna. Isso se refletiria em seus filhos como um defeito congênito em uma das pernas ou a tendência a sofrer, durante sua vida, por um problema de relativa gravidade em seus membros inferiores, a partir de quedas ou desastres que podem ou não ser curados e ultrapassados.
Este com problemas nas pernas. Ambos não são iniciados no candomblé e foram reconhecidos como filhos de Òbàlúwàyiè perante pergunta específica a um Bàbálòrìsà que conheço. O problema deles é diferente: o rapaz em questão sofreu de paralisia infantil, sobrando como seqüela a dificuldade de utilização bem superada hoje em dia de uma das pernas, ligeiramente mais curta que a outra. Já a moça não deve teve problemas congênitos nem infecciosos, mas sofreu um gravíssimo desastre de moto que a deixou muito tempo usando uma muleta, se submetendo a repetidas operações cirúrgicas tanto para contornar problemas ósseos de cicatrização como enxertos de pele, etc. Atualmente ele está em franco processo. Outra marca física é a própria varíola ou seu substituto, uma pele marcada por problemas na adolescência. É bastante freqüente que os filhos homens de Òbàlúwàyiè usem barba por causa disso é a resposta inconsciente à necessidade de se ocultar do velho Òrìsà latente em meio às suas personalidades modernas e metropolitanas.



O QUE DIZ A LENDA
Uma lenda refere-se especificamente ao isolamento buscando por Òbàlúwàyiè e a ele imposto pelos outros Òrìsàs. Mostraremos uma versão recolhida pela professora Monique Augras: Òbàlúwàyiè dança sozinho e sua figura coberta de palha da costa deveras impressionante. Conta um dos nossos informantes que, certo dia de festa, todos os deuses estavam dançando, menos Obàlúwàyiè, que ficara timidamente parado na porta. Ògún, então, perguntou a Nana:Meu irmão está lá fora, não vem dançar. Por quê? Nàná explicou que ele tinha medo de aparecer em público por causa das pústulas. A narrativa explica a seguir que Ògún resolveu ajudá-lo. Ògún não é o senhor da justiça como Sòngó. Mas não pode ser uma situação à sua frente onde alguém sofra por desrespeito ou preconceito dos outros. Não tem, porém, a tranqüilidade de avaliação e frieza de julgamento de Sòngó. Ògún, então resolveu o problema: instigou Òbàlúwàyiè a acompanhá-lo até a floresta, onde teceu para ele com folhas uma roupa para Òbàlúwàyiè que, assim disfarçado, tinha coragem para entrar na sala sem medo de ser automa-ticamente rejeitado.
O estratagema, porém, não foi tão bem sucedido. Muita gente tinha visto Ògún sair para ir até Òbàlúwàyiè antes de se reaproximar trazendo uma figura misteriosa. Temiam dançar com a figura, pois ela estaria carregada de pestes, poderia contaminá-las talvez. O senhor da varíola era uma espécie de párea. Segue Agras: tinham nojo. Somente Oyà, a deusa dos ventos, altiva e corajosa, concordou em acompanhá-lo. Dançou com Òbàlúwàyiè e, junto com eles, o turbilhão dos ventos. E os ventos levantaram as vestes dele. Todos os presentes, com espanto, puderam verificar então que abaixo do fila se escondia o rosto e o corpo de um homem belíssimo, sem defeito algum. Òsún está despeitada até hoje. E, em recompensa pelo seu gesto, Oyà recebeu de Òbàlúwàyiè o poder de reinar sobre os mortos. Mas Òbàlúwàyiè dança sozinho doravante.